Nenhuma capivara é uma ilha
O que é macroecologia de interações e por que seu amigo ecólogo fica esquisito observando outra espécie.
O que um ecólogo vê quando encontra um organismo vivo (ou seja: o tempo todo)? Por exemplo, vejamos o dia em que conheci uma capivara pela primeira vez.
Eu adoro capivaras. Olha só como elas são fofíneas e invocadíneas! A primeira coisa que a gente observa são as características físicas, o jeitão do bicho. No meu caso, cada bicho que eu encontro é uma oportunidade de tentar lembrar as coisas que eu aprendi na faculdade (sem muito sucesso, na maioria das vezes, especialmente quando se trata de peixes) (perdão, professores). Então essa foi a hora em que eu lembrei como só os mamíferos têm orelhas, que este é o maior roedor do mundo, e que dentro desse focinho enorme que dá vontade de morder tem dentões bem grandes que devem ser usados e gastos antes que cresçam demais e comecem a machucar. É nessa hora em que começamos a viajar na maionese. A gente começa a ver o bicho mais ou menos assim:
Este é um diagrama que representa tudo o que faz um bicho estar ou não em determinado lugar. Cada bolinha preta dentro do diagrama é um local onde o bicho está, e cada bolinha branca é um local onde o bicho não está. Chamamos ele de diagrama BAM, porque nele estão representadas as condições bióticas (B), abióticas (A) e de mobilidade (M) relacionadas à vida de um organismo. A mobilidade diz respeito às áreas que estão fisicamente acessíveis. No caso da capivara que eu conheci, todo o Parque das Nações Indígenas, e imagino que todo o estado do Mato Grosso do Sul, é acessível a ela. Não sei se capivara sobe ladeira, escala montanha, então não vou arriscar ir muito além, mas sabemos que capivaras ocorrem estritamente na América, e podem ser encontradas desde o nordeste da Argentina até o Panamá. As condições abióticas são aquelas que caracterizam o local onde o organismo vive. No caso da capivara, sabemos que ela adora um corpo d’água para se refrescar, fugir e namorar (ninguém é de ferro). Ela também prefere locais com arbustos, bastante sombra, onde ela possa descansar.
As condições bióticas dizem respeito aos recursos que os indivíduos podem consumir e que podem acabar, como outros organismos. Por exemplo, os dentes grandes da capivara são ótimos para cavucar e cortar grama, e por isso os ecólogos imediatamente relacionam esta característica a uma relação de herbivoria. Também diz respeito às outras espécies presentes que atrapalham ou favorecem a presença deles. Já notou como é bastante comum encontrarmos aves próximas às capivaras? Algumas aves se aproveitam do rebuliço que as capivaras fazem na hora de pastar para se alimentar dos insetos se incomodam e tentam sair dali. Outras ficam ali pertinho enquanto as capivaras cochilam pra capturar as moscas que são atraídas por elas. Nestes casos, a presença da capivara favorece a presença de outras espécies; mas também a presença destas outras espécies favorecem a presença da capivara, como no caso das garças que ajudam no controle das moscas, que podem causar doenças.
Acontece que as condições bióticas e abióticas influenciam umas às outras. Em alguns casos, mesmo que dois bichos sejam sempre vistos juntos, o clima pode determinar se eles interagem ou não. E mesmo as interações entre as espécies podem interagir entre si! “O quê?!”
Calma que eu explico! Imagina um sistema com quatro espécies: A e B, que se alimentam de duas outras espécies, C e D, que por sua vez competem por alimento. Para que A e B coexistam, é necessário que C e D também coexistam, apesar da competição. Sendo D uma competidora mais forte, C tende a não ocorrer em um local se B também não ocorrer, uma vez que B exerce um controle populacional sobre D e diminui a competição entre D e C. Portanto, a interação entre B e D afeta a interação entre A e C e entre C e D.
Agora imagina isso em um sistema muito maior, com centenas de espécies, ao longo de todo um continente…! É mais ou menos esse tipo de problema que move uma área da ecologia chamada macroecologia de interações. A macroecologia estuda o que pode causar uma variação “ritmada” em alguma propriedade que a gente observa na natureza. Na macroecologia de interações, essa propriedade são as interações ecológicas.
A gente tenta entender desde a relação entre coevolução e interações, até variação geográfica das interações. O que faz duas espécies ocorrerem juntas, mas não interagirem em todos os locais? O que faz as redes de interações ecológicas mudarem? Como isso afeta ou é afetado pela composição das espécies e processos históricos de expansão ou redução da área de ocupação? Será que a gente pode prever quais os locais mais adequados para uma espécie no futuro levando em conta as características dos ambientes e a probabilidade de ocorrência de outras espécies? E, mais importante: estando eu e uma capivara no mesmo recinto, em qualquer lugar do mundo, como fazer com que ela me ame?
Da próxima vez que presenciar um ecólogo encontrando outra espécie e ele estiver assim:
Você já vai saber o que ele estará pensando. Não o assuste, não o reprima. Gentilmente abrace-o e leve-o para um local seguro.
Este texto é uma contribuição para a blogagem coletiva em comemoração dos 10 anos do Science Blogs BR. #ScienceBlogsBr10anos
Agradecimentos à Maria Letícia Bonatelli pela revisão do texto. ❤